Feminilidade,
Daniel Gouvea
Daniel Gouvea é casado com Fabiana e pai de 2 filhas. É Th.M em teologia e exposição do NT e pastor da IBL Nacional em Brasília-DF.
As origens hermenêuticas do “feminismo evangélico” e a coerência dos pressupostos “complementaristas”. por Daniel Gouvêa
Nos últimos anos, o
papel da mulher, na igreja, vem passando por profundas mudanças. Tais mudanças
estão levando denominações inteiras a entrarem em sérias controvérsias e
profundas divisões. Atualmente, são tantos e tão diversos os argumentos
propostos que não é raro encontrar pessoas extremamente confusas sobre essa
questão. A razão de tamanha confusão é que um grande número de líderes de igrejas,
em ambos os lados das “trincheiras”, está militando apenas com os sintomas
desse problema e não com a causa.
O presente artigo tem
por objetivo demonstrar as origens hermenêuticas do "feminismo evangélico”
e destacar que o âmago dos problemas que a igreja enfrenta - em relação ao
papel da mulher - é, antes de tudo, de caráter hermenêutico, ou seja, está
relacionado com a forma ou com os pressupostos pelos quais o texto bíblico é
interpretado.
Isso será demonstrado
por meio de uma sucinta[2]
descrição dos dois pressupostos mais conhecidos sobre a questão, a saber: os
pressupostos dos chamados igualitaristas e os dos chamados complementaristas.
Após isso, será apresentada uma conclusão em favor da coerência do complementarismo
em relação aos pressupotos do igualitarismo.
I – O pressuposto dos igualitaristas
De um modo geral[3],
os igualitaristas fazem uma leitura do relato da criação, baseada no
pressuposto de que o Pentateuco não é de autoria mosaica. Antes, baseiam-se na
Teoria das Fontes, iniciada na metade do século XVIII, por Jean Austruc que
dizia ser o Pentateuco originário de duas fontes distintas, “Javista(J) e Eloísta (E), devido à incidência de
diferentes palavras hebraicas para referir-se a Deus”[4].
Mais tarde, essa teoria foi fomentada por alguns estudiosos e ganhou força sob
a influência de J.H Welhausen, em sua obra ProlegomenaZurGschichteIsraeles,
publicada em 1883, em que ao invés de atribuir a origem do Pentateuco a duas
fontes, mencionava quatro, a saber:
Javista (J), Eloísta (E), Sacerdotal (P), e Deuteronômica (D). Dessa
forma, acreditam os defensores da “Hipótese ou Teoria das Fontes” que o Pentateuco
advém de quatro fontes distintas que foram compiladas no período pós-exílio
excluindo assim, qualquer possibilidade da autoria mosaica[5].
Em outras palavras, consideram o Pentateuco
como uma colcha de retalhos escrita e costurada com a perspectiva de “vários
autores”.
Com
essa perspectiva em mente, dizem que Gn 1:26-27 “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança ... Criou,
pois, Deus o homem sua imagem e semelhança, homem e mulher os criou” é o
relato Eloísta (E), de igualdade entre o homem e a mulher. Ou seja, segundo
eles, em Gn 1, Deus fez o homem e a mulher simultaneamente e iguais. Já com o
advento do pecado, em Gn 3, uma das consequências, inclusive o castigo do
pecado, foi a subordinação feminina ao homem. Em Gn 3:16 “Multiplicarei
sobremodo os sofrimentos da tua gravidez, em meio a dores dará à luz filhos o
teu desejo será para o teu marido e ele te governará”. Assim, argumentam
eles que Jesus Cristo veio a este mundo para livrar-nos das consequências e do
castigo do pecado, e que agora, em Cristo, somos todos iguais. Concluem,
geralmente, citando Gl 3:28 “dessarte, não pode haver judeu nem grego nem
escravo nem liberto; nem homem nem mulher, porque todos vós sois um em
Cristo”.
Com
base nessa interpretação, afirmam que na igreja de Cristo não pode haver
qualquer distinção entre homens e mulheres, no que tange aos papéis e às
funções na igreja.
No entanto, quando os proponentes
dessa posição são confrontados com Gênesis 2 – que afirma ter sido a mulher
criada do homem e, em seguida, ao homem -, lançam mão, sem nenhuma reserva, da Teoria
das Quatro Fontes, dizendo que Gênesis1 é de uma autoria e Gênesis 2, de
outra. Observe, por exemplo, o que a doutora Elizabeth A. Johnson, adepta de tal
teoria, diz: “O texto clássico da Bíblia que tem servido de base para a
compreensão da mulher na visão patriarcal é o do relato da criação, da fonte
Javista (J) ... Enquanto o primeiro relato pode ser interpretado sob a visão de
maior igualdade entre homem e mulher, ... o segundo relato já no ato da criação
da mulher acentua a desigualdade entre homem e mulher e a dependência desta em
relação ao varão. No primeiro relato, homem e mulher são conjuntamente imagem
de Deus, no segundo relato, a mulher parece ser indiretamente imagem de Deus no
homem”[6].
Com
esses pressupostos em mente, alegam os Igualitaristas que a cultura bíblica é
“androcêntrica”, “patriarcal” e que o objetivo da hermenêutica -especialmente
feminista - é a despatriarcalização da Bíblia[7].
Afirmam, por exemplo, que os escritos de Paulo são permeados da influência
“patriarcal” ou “machista” das Escrituras. “Embora Paulo tenha, em sua visão
cristã, grande apreço pela mulher, comparando-a com a Igreja... ele não
consegue superar os condicionamentos da cultura patriarcal que claramente estão
presentes na Bíblia a partir do relato da criação da mulher e da queda dos
primeiros homens”. [8]
Como
se pode observar, o pressuposto hermenêutico dos igualitaristas é muito
dependente da não autoria mosaica e, por conseguinte, da Teoria das Fontes.
Esse pressuposto afetará drasticamente a interpretação de todos os textos
bíblicos que falam sobre o papel das mulheres, limitando os textos das
Escrituras, que tratam destes assuntos, a meras expressões circunstanciais e
culturais existentes naquela época; e que nada tem a ver para a realidade
atual.
II O pressuposto dos complementaristas
O
pressuposto dos complementaristas, ao contrário dos igualitaristas, não exclui
a autoria mosaica para o Pentateuco e não depende, em nada, da Teoria das Fontes.
Pelo contrário, os complementaristas insistem que Moisés foi o autor do Pentateuco
e que Gênesis 2, ao invés de ter sido escrito por outra mão que não a de
Moisés, é simplesmente uma extensão mais detalhada do que se diz em Gênesis,
capítulo1[9].
Os
complementaristas acreditam dessa forma, lançando mão tão somente da coerência
interna e da estrutura literária do próprio livro de Gênesis. Eles observam que
o que marca a estrutura do livro é a expressão tôledôt (esta é a gênese…)
que é um substantivo feminino de yálad, normalmente traduzido pelas palavras (gerações,
histórias, descendentes ou esta é a história ou narrativa de...). Essa
expressão "tôledôt" aparece nas principais divisões da história de Gênesis,
de modo a demonstrar uma estrutura fluida e intencional do início ao fim do
livro.[10]
Os
complementaristas, ainda, demonstram que a expressão "auxiliadora
idônea", de Gênesis 2:18,20, carrega a ideia de que a mulher corresponde
ao homem e completa a solidão em que este se encontrava. Portanto, o
relacionamento entre homem e mulher é de natureza complementar, visto que
nenhum dos dois seria pleno sozinho. Além
do mais, os complementaristas enfatizam que, na maioria das vezes, a palavra
"auxiliadora" aparece no Antigo Testamento e se refere ao auxílio que
vem de Deus (Dt 33:29, Sl 121:1-2; Os 13:9 etc.). Nesse sentido, o texto de
Gênesis sugere que a mulher é um auxílio vindo da parte de Deus, o que não
seria, em hipótese alguma, pejorativo para a mulher.
Em suma, os complementaristas entendem
que o homem foi criado primeiro que a mulher com a ordem de cultivar o jardim.
Por sua vez, a mulher foi criada posteriormente para viver num relacionamento,
cujo homem e mulher se completam, e, dessa forma, refletem a imagem do Deus
trino em seu relacionamento.
III A coerência do
complementarismo em relação aos pressupostos do igualitarismo
Como
mencionado anteriormente, pretende-se, nesse artigo, apresentar a maior
coerência dos pressupostos complementaristas em relação aos pressupostos igualitaristas,
pelas seguintes razões:
1.
Para que o igualitarismo funcione, ele precisa, via de regra, lançar mão
de uma teoria - a das quatro fontes - desenvolvida apenas no século XVIII,
carregada de pressupostos da teologia liberal iluminista. Precisa também
ignorar, em medidas astronômicas, o testemunho interno e a estrutura literária
da própria Bíblia. Isso por si somente, quando percebido, leva a “hermenêutica
feminista” a um profundo descrédito.
2.
É extremamente incoerente rejeitar a autoria de Moisés como autor do Pentateuco,
uma vez que esta é afirmada pelos apóstolos e pelo próprio Jesus (Mt 19:4-8; Mc
12:26; At 3:22). Estariam os adeptos da Teoria das Fontes mais bem informados
que os apóstolos e Jesus, no que diz respeito à autoria do Pentateuco e, em
especial, à de Gênesis?
3.
O que torna ainda o complementarismo mais coerente que o igualitarismo é
o fato de que, no pressuposto complementarista, nenhuma manobra se faz
necessária para demonstrar seu pensamento. Ou seja, estes se atêm ao testemunho
e à estrutura do texto como uma narrativa única, sem a necessidade de mudar
isso para adaptá-lo a algum interesse próprio. Será que se poderia dizer o
mesmo dos pressupostos igualitaristas?[11]
O fato de o capítulo 1, de Gênesis, usar o nome Elohim para se referir a
Deus, e Gênesis 2 usar Javé não sugere, em nenhuma hipótese, duas autorias para
o texto! Os igualitaristas falham em perceber que usar vários nomes para
referir-se a Deus poderia ser comum, uma vez que em todo Oriente Médio Antigo,
divindades sumérias egípcias e cananitas eram designadas por dois ou mais nomes
diferentes, sem qualquer sugestão de multiplicidade de autores em tais casos[12].
5.
As frequentes acusações de “machismo” e “patriarcalismo” que os
complementaristas recebem, não refletem, nem de perto, o tipo de relacionamento
complementar descrito em Gênesis 1 e 2. Quando estes capítulos são estudados,
de maneira exegética e séria, o interprete é conduzido a um elevado conceito
supracultural do relacionamento entre homem e mulher.
Diante das questões mencionadas,
percebe-se a coerência bíblica do complementarismo em relação aos pressupostos
do igualitarismo.
Conclusão
Dessa forma, nota-se que muitas das
discussões - acerca do papel da mulher na igreja - são de caráter superficial e
apaixonado, sem levar em conta a raiz do problema.
Este
artigo tentou demonstrar que o papel da mulher, na igreja, não é uma questão de
preferência pessoal, mas suas raízes estão firmadas nos pressupostos ou maneiras
como a Bíblia é encarada. Esse aponta que os pressupostos dos igualitaristas são
fundamentados, normalmente, em uma hermenêutica que parte do esforço de
encaixar a leitura das Escrituras dentro do espírito do liberalismo do Século
XVIII; que, via de regra, repudiava a inspiração proposicional e plenária das
Escrituras. Por outro lado, os pressupostos dos complementaristas repousam
sobre o testemunho interno das Escrituras, de que tanto Gênesis 1 como Gênesis
2 foram escritos por Moisés; e que o Capítulo 2, de Gênesis, simplesmente
fornece mais detalhes da criação e dos papéis do homem e da mulher. Isso não
exclui o fato de serem ambos iguais em valor, criados conforme a imagem e
semelhança Deus, com funções distintas, porém complementares. Isso, além de ser
supracultural, repousa com maior força na coerência, na estrutura e na
linguagem do próprio texto, tornado o argumento complementarista, naturalmente,
mais coerente com a Bíblia.
É ainda escritor do livro: A soberania de Deus na justificação.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
Augustus Nicodemus Lopes, O culto Espiritual, 1ªEdição.
Ed.Cultura Cristã.
Carlos Osvaldo Cardoso Pinto, Foco e
Desenvolvimento do Velho Testamento, Ed. Hagnos.
Carlos Osvaldo Cardoso Pinto, Foco e
Desenvolvimento do Novo Testamento, Ed.Hagnos
Craig G. Bartholomew, Michael W. Gohenn, O Drama
das Escrituras: Encontrando nosso Lugar na História Bíblica, Ed. Vida Nova.
J. Evan, A mulher na Bíblia, Ed. ABU.
John Piper, Wayne Grudem, Homem e Mulher, Ed. Fiel.
John McArthur, Homens e Mulheres, Ed. Textus.
J. N. D. Kelly, I e II Timóteo e Tito, Introdução e
Comentário, Ed Vida Nova.
Neil R. LiglhtFoot, O Papel da Mulher na Vida
Cristã, Ed. Vida Cristã.
Raimond B. Dillard, TemperLogmam III, Introdução ao
Antigo Testamento, Ed. Vida Nova 2006.
Ross P. Allen, The
Bible Knowledge Commentary: Old Testament, Zondervan.
Stanley J. Grenz, A Mulher na Igreja, Ed. Candeia.
Teologia e Modernidade, 1a Edição, Ed.
Fonte Editorial.
Walter Kaiser, Documentos do Antigo Testamento, Ed.
Cultura Cristã.
[2] Para questões detalhadas
sobre o assunto veja: Augustus Nicodemus Lopes, O culto Espiritual, 1ªEdição.
Ed.Cultura Cristã 1999. J. Evan, A mulher na Bíblia, Ed ABU. John Piper, Wayne
Grudem, Homem e Mulher, 1ª Edição. Ed Fiel 1996. John McArthur, Homens e
Mulheres, 1ª Edição. Ed. Textus.
[3]
Usa-se aqui a expressão "de um modo geral”, em vista do fato de que alguns
igualitaristas não defendem necessariamente a Teoria das fontes. Entretanto,
acreditam que passagens tais como 1Tm 2:11-15 lidam estritamente com a questão
da igreja de Éfeso, não tendo paralelo com a igreja atual. Gordon Fee é um
exemplo disso em seu livro: Gospel and Sprit: Issues in New Testament Hermeneutics,
p. 70.
[4]
COP, Foco e Desenvolvimento do Antigo Testamento, p-22, Ed. Hagnos.
[5]
Para maiores informações vija em: Dillard B. Raimond e LogmanTremper III,
Introdução ao Antigo Testamento, pp.39-42, Ed. Vida Nova. Kaiser Walter,
Documentos do Antigo Testamento, pp. 49-60, Ed. Cultura Cristã. COP, Foco e
Desenvolvimento do Antigo Testamento, pp.21-22, Ed. Hagnos.
[6]
Elizabeth A. Johnson, A masculinidade de Cristo. Concilium 238-199/6,p.122-125,
citado em: Teologia e Modernidade, Ed. Fonte Editorial, p. 206
[7]
Martins Jaziel Guerreiro em Teologia e modernidade, Ed. Fonte Editorial, p. 208.
[8]Jaziel G. Martins, A Historical
investigation of women’s position and their activities in the church between
the first and fourth centuries, p.15
[10]
O livro de Gênesis é estruturado por dez “Tôledôts”. O primeiro é: “Essa é a história do céu e da
terra” (Gn 2:4-4:26). Os outros são: “Essa é a história da descendência de
Adão” (Gn 5:1-6:8), “Essa é a história de Noé” (Gn 6:9-9:29), “Essa é a
história de Sem, Cam, e Jafé (Gn 10:1-11:19), “Essa é a história de Sem” (Gn
11:10-26), “Essa é a história de Terá” (Gn 11:27-25:11), “Essa é a história do
filho de Abraão, Ismael” (Gn 25:12-18), “Essa é a história do filho de Abraão,
Isaque” (Gn 25:19-35:29), “Essa é a história de Esaú” (Gn 36:1-37:1), “Essa é a
história de Jacó” (Gn 37:2-50:26). Craig G. Bartholomew e Michael Goheen, O
Drama das Escrituras: Encontrando nosso lugar na História Bíblica, p. 48, Ed.
Vida Nova.
[11]
Sabe-se que grandes excessos podem ser vistos entre igualitaristas e
complementaristas. Contudo, não é o propósito deste artigo avaliar essa
questão. Para avaliar essa questão mais amplamente veja: https://bible.org/seriespage/biblical-gynecology-part-1
[12]
COP, Foco e Desenvolvimento do Antigo Testamento, p. 22, Ed. Hagnos.
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