FeminismoXBiblia,
Nelson é casado com Simone desde 1997 e eles têm um filho. Ele é formado em História e Teologia, pós-graduado em Administração Escolar e mestre em Educação (PUC-SP). Atualmente faz mestrado em Teologia do Novo Testamento no Seminário Bíblico Palavra da Vida- Atibaia, SP.
A Bíblia precisa ser desmasculinizada? por Nelson Galvão
A Bíblia precisa ser desmasculinizada?
O recente movimento feminista tem acusado a Bíblia de machismo. As
Escrituras teriam sido escritas em um ambiente patriarcal, machista e, por
isso, seriam repletas de afirmações e narrativas que refletem uma cultura “Androcêntrica”.
Veja o que afirma a teóloga Rosemary Ruether, em seu livro “Sexismo e religião”,
publicado pela Editora Luterana:
Partindo
do pressuposto básico de que o macho é o modelo da pessoa humana e, portanto,
também a imagem normativa de Deus, todos os símbolos, da linguagem sobre Deus à
cristologia, à igreja e ao ministério são moldados pelo modelo dominante do
macho como figura central, e a fêmea como subordinada e auxiliar.[1]
Para a teóloga feminista, a Bíblia é
inteiramente influenciada pelo machismo e, por isso, não pode ser a autoridade
final. Dessa forma, na concepção de Ruether, deveriam ser descartados todos os “elementos
machistas” da Bíblia, como até mesmo referir-se a Deus no masculino, uma vez
que Deus teria sido expresso de forma machista pela cultura judaico-cristã, que
é marcada pelo “patriarcado”. A proposta feminista então é fazer uma leitura
feminista da Bíblia, a desmasculinizando:
A
leitura feminista da Bíblia encontra na fé bíblica uma norma pela qual os
textos bíblicos são submetidos à crítica [...] Desse modo, muitos aspectos da
Bíblia são explicitamente postos de lado e rejeitados.[2]
Na concepção de Ruether até mesmo Jesus
deveria ser “desmasculinizado”:
No
momento em que a mitologia de Jesus, o Messias, ou o logos divino, acompanhado
de sua imagética masculina tradicional, for eliminada, o Jesus dos evangelhos
sinóticos será reconhecido como figura imensamente compatível com o feminismo.[3]
Essa seria então uma “hermenêutica de suspeita” feminista. A Bíblia teria
sido escrita, traduzida, canonizada e interpretada por homens. O Canon da fé
ficou centralizado no homem. Assim, por meio da reconstrução teológica e
exegética, as mulheres novamente deveriam assumir o lugar de destaque que
ocuparam na história cristã primitiva.
Foi nesse caminho teológico que em 1998, mais de 800 feministas, gays e lésbicas do mundo
inteiro reuniram-se nos Estados Unidos num Congresso chamado “Reimaginando
Deus”. Os participantes do Congresso celebraram uma
“Ceia” onde o pão e o vinho foram substituídos por leite e mel, e conclamaram
as igrejas tradicionais a pedir perdão por terem se referido a Deus sempre no
masculino. Amaldiçoaram os que são contra o aborto e abençoaram os que defendem
os gays e as lésbicas.
É nesse mesmo caminho teológico que recentemente
a Igreja Nacional da Escócia abraçou a chamada “teologia de gênero”. De acordo
com cartilha divulgada pela Igreja, os pastores devem considerar o
uso de “linguagem
neutra” para se referir a Deus.
É nesse
mesmo caminho teológico que muitas igrejas evangélicas no Brasil tem aceitado
pastoras, considerando textos como 1 Tm 2.11, ou 1 Co 1.3, como machismo de
Paulo, ou declarações que devem se circunscritas ao tempo da igreja primitiva.
As origens da tentativa de desmasculinizar a Bíblia
Esse esforço em “desmasculinizar” a Bíblia
tem origem na hermenêutica de Bultman. Rudolf Bultmann nasceu em 1884, em
Wiefelstede, Alemanha. Era filho de pastor luterano e neto de missionário na
África. Frequentou as universidades de Tubingen, Berlin e Marburg. Foi influenciado
pelos professores liberais: Wilhelm Hermann e Adolf Von Harnack.
Influenciado ainda pelo existencialismo de
Heidegger, Bultmann propôs a abordagem hermenêutica da crítica da forma.
A abordagem da crítica da forma proposta por
Bultmann parte do princípio de que o conteúdo de origem oral dos Evangelhos,
especialmente os sinóticos, “sofreu alterações resultantes da sobreposição de
camadas de tradições subsequentes”[4].
Em outras palavras, a Igreja, em anos posteriores ao cristianismo primitivo
teria acrescentado a teologia presente no Cânon. Assim, o material contido no Novo
Testamento procederia, em grande parte, de ambientes não-judeus ou estranhos à
Bíblia. Assim, por exemplo, “o misticismo egípcio, a especulação filosófica
helenista, as religiões de mistério e os ritos religiosos romanos formam um
pano de fundo importante para a compreensão das principais ideias do NT”[5].
Por exemplo, o “Senhor” de Paulo, seria do Helenismo e não judaico, assim como
“Filho de Deus” e “Salvador”.
De acordo com Bultmann, o gnosticismo teria influenciado, dentre outras
coisas:
(1) a escatologia neotestamentária. Por exemplo, seria linguagem
gnóstica quando Satã é “chamado de Θεὸς τοῦ αἰῶνος τούτου (2 Co 4.4), ou ἄρχων τοῦ κόσμου τούτου[6].
(2) a antropologia bíblica. Segundo Bultmann, “a mitologia gnóstica
serve para caracterizar a situação do ser humano no mundo como uma vida que,
por sua procedência, está fadada ao perecimento, que está entregue ao domínio
de poderes demoníacos”[7];
(3) a terminologia para expor o evento salvífico[8].
A desmitologização precede a desmasculinização
Para Bultman o gnosticismo teria influenciado o cristianismo de tal
forma que este criou a imagem mitológica de Jesus conforme a vemos no Evangelho
de João. Dessa forma, seria necessário distinguir o Jesus da história do Jesus
da fé.
Em sua obra “Jesus Cristo e mitologia”, Bultmann afirma:
A
mitologia [...] crê que o mundo e a vida humana têm seu fundamento e seus
limites em um poder que está mais além de tudo aquilo que podemos calcular
ou controlar. A mitologia fala deste poder de forma inadequada e insuficiente,
porque o considera um poder humano. Fala de deuses, que representam o poder
situado mais além do mundo visível e compreensível... Tudo o que acontece é
igualmente válido para as concepções mitológicas que se dão na Bíblia.[9]
Em 1941 Bultmann escreveu um livro: “Novo Testamento e mitologia: o
problema da eliminação dos elementos mitológicos da proclamação do Novo
Testamento”. Nesse livro, o autor recomenda:
“Ninguém
que seja adulto o suficiente para pensar por conta própria imagina que Deus
possa habitar um céu situado em algum lugar. Não existe mais céu algum no
sentido tradicional da palavra. O mesmo se aplica ao inferno no sentido de um
submundo mítico localizado debaixo dos nossos pés. Portanto, a história segundo
a qual Cristo desceu ao inferno e subiu ao céu deve ser descartada. Não podemos
mais esperar pelo retorno do Filho do Homem nas nuvens ou acreditar que os
fiéis o encontrarão nos ares”[10].
Essa interpretação literal do Novo Testamento é chamado por Bultmann de
“sacrificium intellectum”[11].
Dessa forma, Bultman negava: (1) A escatologia do Novo Testamento; (2) O
ensino de expiação do NT, uma vez que supostamente repousa sobre o imaginário
primitivo de culpa e justiça; (3) O Filho do Homem preexistente que entra no
mundo para salvar o homem seria do gnosticismo.
Para Bultmann, o evento Jesus é uma combinação de história e mito. De
acordo com Bultmann, “lendária é a história da tentação [...] Um colorido
lendário possui a história da entrada de Jesus em Jerusalém [...], e elementos
lendários penetraram de múltiplas maneiras na narrativa da paixão de Jesus”[12].
Esses “mitos devem ser interpretados de forma antropológica, e não de
cosmológica; não como imagens objetivas do mundo, e sim como expressões de
nossa compreensão da existência humana”[13].
Dessa forma, Bultmann diferencia o Jesus da história, do Jesus da fé. Bultmann
não via Jesus como Filho de Deus que expiou os pecados do mundo. A morte e
ressurreição de Jesus têm um significado existencial. A teologia não está
interessada em fatos históricos, mas no significado existencial dos eventos
históricos. Assim, Bultman quando questionado se acreditava que Jesus havia de
fato ressuscitado dos mortos, respondeu: “Sou teólogo e não arqueólogo”[14].
Segundo o teólogo:
“O
reconhecimento de Jesus como aquele no qual a palavra de Deus se nos depara de
modo decisivo, quer se lhe atribua o título ‘Messias’ ou o de ‘Filho do homem’,
quer se o denomine de ‘Senhor”, é um mero ato de fé que independe da resposta à
pergunta histórica, se Jesus se considerou o Messias. Essa pergunta somente
pode ser respondida pelo historiador – na medida em que for possível
responde-la; e a fé como decisão pessoal não pode depender de seu trabalho”[15].
Esse método foi absorvido sem reservas pela
teologia feminista que tenta fazer uma releitura das Escritura sob o viés do
feminismo.
Uma breve
consideração dos pressupostos da teologia feminista
A teologia bultimaniana não crê na inspiração
das Escrituras e a teologia feminista que tem influenciado tantas igrejas
evangélicas no Brasil tem bebido desse tipo de fonte.
O pressuposto básico por detrás dessas
teologias, que hora tentam “desmitologizar” as Escrituras, e outra hora tentam “desmasculinizá-la”,
é a descrença na inspiração das Escrituras.
Não quero ser extensivo na argumentação a
respeito da autoridade das Escrituras. Basta-nos nos deter em 2 Tm 3.15-17:
Porque desde criança você
conhece as sagradas letras, que são capazes de torná-lo sábio para a salvação
mediante a fé em Cristo Jesus. Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a
repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa
obra.
Paulo escreve a sua
segunda carta ao jovem pastor Timóteo para instruí-lo em como este deveria
proceder na liderança da Igreja do Senhor. De acordo com Carlos Oswaldo, o
argumento básico dessa carta é: “Motivar Timóteo a assumir sua parte no
ministério de Paulo suportando as provas do ministério com perseverança e
pureza” (Pinto: 2008, p. 449).
Com isso em mente, percebemos
que não é possível considerar o vs. 15 isoladamente, assim como o fazem alguns
neo-ortodoxos. Sim, as sagradas letras são capazes de tornar o homem sábio para
a salvação, mas elas também são capazes de tornar o homem de Deus últil para
toda a boa obra, porque “toda” ela é inspirada, e não somente partes.
A palavra γραφὴ (Escritura)
ocorre 55 vezes no Novo Testamento e em todas as ocorrências se refere ao
Antigo Testamento. Isso significa que, embora Deus tenha usado agentes humanos,
as palavras do Antigo Testamento são θεόπνευστος (inspiradas).
Conceito semelhante está
em 2 Pe 1.20,21:
Antes de mais nada, saibam que
nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois
jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte de
Deus, impelidos pelo Espírito Santo.
Entretanto,
tudo indica que Paulo também se referia aos seus próprios ensinamentos como
inspirados. Parece que em 2 Tm 3.14-17, Paulo inclui as duas fontes do
conhecimento de Timóteo, quais sejam, "aquilo que aprendeste" (de
mim- 2 Tm 3.14) e "as sagradas letras", como inspirados. Em várias
ocasiões, Paulo chega bem perto de chamar seus escritos de “Escritura”. De
acordo com o que nos lembra Stott:
Encaminha suas cartas para serem lidas nas assembléias
cristãs, sem dúvida ao lado das leituras do Antigo Testamento (p. ex.: Cl 4:16;
1 Ts 5:27). Várias vezes ele afirma estar falando em nome e com a autoridade de
Cristo (p. ex.: 2 Co 2: 17; 13: 3; Gl 4: 14), e chama a sua mensagem de "a
palavra de Deus" (p. ex.: 1 Ts 2:13). Uma vez ele diz que, comunicando o
que Deus lhe revelara, não usa "palavras ensinadas pela sabedoria humana,
mas ensinadas pelo Espírito" (1 Co 2: 13).[16]
Além disso, Pedro chama as cartas de Paulo de
“Escritura”, no mesmo patamar do Antigo Testamento (2 Pe 3.15,16).
Dessa forma, entendo que os pressupostos da teologia
feminista, e seus esforços em “desmasculinizar” as Escrituras, não se sustentam
à luz das Escrituras.
A oposição de Oscar Cullmann
Rudolf Bultmann encontrou em Oscar Cullman seu maior oponente. Os
argumentos de Cullman contra a “desmitologização” de Bultman são contundentes e
aplicáveis a “desmasculinização”, usada pelos feministas.
Cullman nasceu em 1902, em Estraburgo, França. Foi professor de Novo
Testamento na Universidade da Basiléia, Suíça.
Assim como Bultmann, Cullman utilizava-se do método histórico-crítico
para a intepretação da literatura do NT[17];
entretanto, chegou a conclusões diferentes de Bultmann[18].
Para Cullmann o material historiográfico contido nas páginas do Novo
Testamento é plenamente confiável: “é possível extrair um volume significativo
de informações confiáveis do Novo Testamento e da literatura correlata sobre o
Jesus histórico e sobre seus ensinamentos”[19].
Do contrário, uma questão levantada por Paul Enns é pertinente:
“à luz das posições de Bultmann, qual seria o
benefício de proclamar um evangelho sem validade histórica?” Se o Jesus
verdadeiro não pode ser realmente conhecido, como Bultmann sugere, qual é o
benefício de pregar o evangelho?”[20].
Faço a mesma pergunta aos feministas evangélicos: Se a Bíblia é machista
em seu conceito sobre casamento, família e papel feminino na igreja, quem
poderia confiar em um Salvador que nasceu em um ambiente supostamente machista
e parece ter ratificado esse machismo?
Quanto à influência do gnosticismo sobre o cristianismo primitivo,
Cullmann argumentou que não existem evidências historiográficas suficientes
para essa afirmação de Bultmann. Assim, se posicionou de forma contrária ao
teólogo alemão. Foi o cristianismo primitivo que influenciou a comunidade
gnóstica. “A verdade é exatamente o oposto que Bultmann afirmava: foram os
ensinamentos do cristianismo primitivo que comunicaram ao gnosticismo
características cristãs sólidas”[21].
Cullmann escreveu o livro “Cristo
e o tempo”. Era uma tentativa de documentar, com base na literatura bíblica, um
ponto de vista teológico da história, que veio a ser conhecido como heilsgeschichte, “História da Salvação”.
Isso significa que:
(1) Deus agiu de maneira redentora no decurso da história;
(2) esses eventos salvíficos se colocam um diante do outro numa dupla
relação de continuidade e progressão;
(3) o evento de Jesus é o centro dessa história. “Toda teologia cristã,
em sua mais íntima essência, é história bíblica”.
Da mesma forma, podemos afirmar que não foi a cultura “patriarcal” Antiga
que influenciou as Escrituras, mas as Escrituras que trouxe a revelação da
pessoa de Deus, o conceito de família heterossexual e monogâmica e o conceito
complementarista de liderança no lar. É na história da salvação que encontramos
a vontade de Deus para os gêneros e para a família.
Assim, conclui-se que o esforço deliberado do movimento feminista em “desmasculinizar”
as Escrituras representa mais um ataque demoníaco à verdade revelada. Muitos
pastores estão desavisados das implicações dessa abordagem feminista e minimizam
o problema. O que está em jogo é a doutrina da inspiração das Escrituras.
Talvez nunca na História do Cristianismo a Igreja tenha sofrido um ataque tão
sorrateiro e danoso.
Nelson Galvão
Sola Scriptura
[1] Miller e Grenz. Teologia Contemporâneas,
p. 188
[2] Ibid, p. 191
[3] Ibid,
p. 195
[4]
Ibid, p. 50.
[5]
Ibid, p. 51.
[6]
Rudolf Bultmann. Teologia do Novo Testamento. p. 227.
[7] Ibid, p. 229.
[8] Ibid, p. 230,
[11]
Ibid, p. 55.
[12]
Rudolf Bultmann. Teologia do Novo Testamento. p. 66.
[14]
Ibid, p. 60.
[15]
Rudolf Bultmann. Teologia do Novo Testamento. p. 66.
[16] John Stott. p. 45
[17]
Concordo com o esclarecimento de Carson, MOO & Morris: “A crítica da forma
não pressupõe nenhum juízo a priori sobre a historicidade do material que
analisa [...[ De modo que, numa definição assim restrita, há sem sobra de
dúvida espaço para a crítica da forma no estudo dos evangelhos”. Introdução ao
Novo Testamento. p. 25.
[18]
Miller & Grenz. Teologias Contemporâneas. p. 61
[19]
Ibid, p. 62.
[20]
Paul Enns. Manual de Teologia Moody. p. 701.
[21]
Ibid, p. 62.
Nelson é casado com Simone desde 1997 e eles têm um filho. Ele é formado em História e Teologia, pós-graduado em Administração Escolar e mestre em Educação (PUC-SP). Atualmente faz mestrado em Teologia do Novo Testamento no Seminário Bíblico Palavra da Vida- Atibaia, SP.
Atua como diretor pedagógico do ministério Pregue a Palavra, como coordenador do grupo do Pregue a Palavra de Cuba e como professor convidado da Escola de Pastores PIBA.
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