NelsonGalvao,
Por qualquer um, mas não de qualquer jeito. por pr. Nelson Galvão
Em abril de 2013,
no seu primeiro discurso ante o Comitê da Bíblia do Vaticano, o Papa Francisco
afirmou que somente a Igreja é capaz de interpretar corretamente as Escrituras.
Citando um texto do Concílio Vaticano II, a Constituição 'Dei Verbum', o
pontífice advertiu: "O Concílio lembrou com grande clareza: tudo o que
está relacionado com a maneira de interpretar as Escrituras está, em última
análise, sujeito ao julgamento da Igreja, que realiza o seu mandato divino e o
ministério de preservar e interpretar a palavra de Deus".
A interpretação e a Reforma Protestante
Bem, desde a
Reforma Protestante no séc. XVI a Igreja Protestante vem se posicionando
absolutamente contra tal imposição da Igreja Católica. Os reformadores
afirmaram em alto e bom som que SIM! Sim, a Palavra de Deus, pode ser
interpretada corretamente por qualquer pessoa regenerada. Lutero se opôs
veementemente contra a tradição eclesiástica e cria que somente a Bíblia
poderia definir os dogmas. Em 1521, diante da Dieta de Worms, convocada pelo
imperador alemão Carlos V, Lutero se recusou a retratar-se e afirmou:
"A menos que
eu seja convencido pelas Escrituras e pela razão pura e já que não aceito a
autoridade do papa e dos concílios, pois eles se contradizem mutuamente, minha
consciência é cativa da Palavra de Deus. Eu não posso e não vou me retratar de
nada, pois não é seguro nem certo ir contra a consciência. Deus me ajude.
Amém". (Bettenson, 2001: 304)
Calvino também se
posicionou contrário à imposição da Igreja sobre a interpretação da Bíblia. Em
suas Institutas ele afirma:
“Entre a maioria,
entretanto, tem prevalecido o erro perniciosíssimo de que o valor que assiste à
Escritura é apenas até onde os alvitres da Igreja concedem. Como se de
fato a eterna e inviolável verdade de Deus se apoiasse no arbítrio dos homens!”
(Calvino, 1984, Vol I: 82)
Faltaria aqui
espaço para mencionar outros importantes reformadores que também afirmaram
veementemente a autoridade máxima das Escrituras em detrimento da imposição
hermenêutica da Igreja.
O que é mesmo “livre interpretação das
Escrituras”?
Todavia, a livre
interpretação das Escrituras tem sido mal compreendida. É muito comum sermões
que absolutamente desconsideram o sentido do texto sagrado, a partir do seu
contexto histórico-gramatical. Este é interpretado a partir da criatividade do
pregador que assevera ter a liberdade de atribuir às Escrituras o sentido que
mais considera conveniente.
Não é isso que
significa o conceito de “livre interpretação das Escrituras”. Este conceito refere-se
ao fato de que não existe autoridade que detenha o monopólio da interpretação
bíblica. A autoridade é a própria Bíblia. A Bíblia interpreta a Bíblia e
qualquer pessoa regenerada pode interpretá-la corretamente.
Por que as Escrituras precisam de
interpretação?
Faz-se necessário
considerar que as Escrituras possuem uma natureza divina e uma natureza humana
(2 Pe 1.19-21). Divina porque é a Palavra de Deus para todos os homens, em
todas as épocas e em todos os lugares.
Em relação ao
elemento humano das Escrituras, existem enormes desafios para os intérpretes. A
parte mais jovem das Escrituras data de 2000 anos atrás. Ela foi escrita em
três línguas diferentes, em lugares que a maioria de nós nunca esteve, em uma
cultura que o mundo Ocidental desconhece. É por isso que Zuck (2008) e Paul
Ricoeur (in Osborne: 2009) chamam essas dificuldades que se colocam diante da
tarefa da interpretação de “abismos”.
Ao que parece a
denominação “abismos” é inadequada, porque denota intransponibilidade e não é
esse o caso. Dessa forma, a sugestão de Osborne (2008) parece ser mais
pertinente: “distâncias”.
Assim, acredito
na possibilidade da transposição dessas distâncias de tempo, lugar, cultura,
língua. Contudo essa tarefa não pode ser feita de qualquer jeito. Ela demanda
um extenso estudo espiritual, cuidadoso esforço e profunda dedicação.
É aí que vem um
grande problema: nem todos os líderes estão dispostos a fazer esse estudo! Uns
por se acharem incapazes, outros por mera preguiça intelectual, outros ainda,
por acreditar que o estudo não é uma tarefa espiritual.
Atrocidades na interpretação da Bíblia
Em todo caso,
diante da falta de estudo ao interpretar as Escrituras, têm-se acarretado
verdadeiras atrocidades em relação à Palavra de Deus, atribuindo ao texto
Sagrado o que este nunca disse.
Alguns erros são
muito comuns ao se interpretar as Escrituras. Entre estes estão: alegorização,
subjetivização e a espiritualização. Gostaria de me deter especialmente no
segundo erro, a subjetivização.
O método de
interpretação das Escrituras conhecido como subjetivização foi influenciado
pela filosofia existencialista de Martin Heidegger (1889-1976) e desenvolvido pelo
teólogo alemão Bultmann (1884-1976), o expoente da Escola de Interpretação
conhecido como Nova Hermenêutica.
De acordo com
esse método, o sentido do texto sagrado é o seu significado para o leitor de
hoje, cidadão do séc. XXI, e não a intenção do autor, ou o que o texto falou
aos seus leitores originais. Assim, o que mais se houve é: “esse texto
significa isso pra mim”. E se esse significado não estiver de acordo com o
significado que outra pessoa atribuiu ao texto, não tem problema, porque o que
importa é o que o texto significa para cada um!
Embora a maioria
das pessoas no Brasil não conheçam esses nomes, muitos têm inadvertidamente
usado seus métodos de interpretação.
Assim, aquele que
prega no texto em que José é lançado pelos seus irmãos no poço (Gn 37),
dirige-se aos seus ouvintes e pergunta: “Que poço da vida você se encontra?”.
Ou aquele que lê sobre a luta de Davi com Golias (1 Sm 17), e apressadamente se
coloca no lugar de Davi e diz: “Vou vencer os gigantes (problemas) que tem se
levantado contra mim”. Ou até mesmo aquele professor de curso de crescimento de
igreja que usa o livro de Neemias para dar estratégias de crescimento, como a
identificação dos “muros que precisam se reconstruídos da devocional”!!!!
Outro dia me
encontrei em uma roda de colegas e o líder da reunião propôs a leitura de um
texto das Escrituras. A partir da leitura cada um teve a chance de colocar suas
impressões a respeito do que foi lido. As interpretações foram das mais
variadas possíveis e, ao final, o líder da reunião concluiu: “estou feliz que
cada um tenha tirado suas próprias lições do texto”.
O problema desse
método é que ele nega a objetividade da verdade, e sujeita o texto à
subjetividade da mente criativa do leitor. Para estes, o importante não é a
mensagem real do texto, mas o sentido atribuído a ele.
Diante dessa
atitude espúria de interpretação das Escrituras, precisamos afirmar e reafirmar
que a Bíblia é a Palavra de Deus escrita para todos os homens, em todas as
épocas e em todos os lugares. É exatamente por isso que ela precisa ser
estudada com todo o zelo e cuidado.
Esse cuidado
refere-se à busca do sentido do texto, buscando a intenção do autor e o que os
leitores originais entenderam, por intermédio de um estudo do contexto
histórico-gramatical, para então, e somente então, aplica-lo ao homem moderno.
Afinal, o chamado do pregador é que este pregue a Palavra (2 Tm 4.2) e não as
impressões que ele tenha a respeito.
Irmãos, qualquer pessoa pode
interpretar as Escrituras, mas não de qualquer jeito, porque então não teremos
a Palavra de Deus, mas a palavra do homem.
Pr. Nelson Galvão
Sola Scriptura
Nelson é casado com Simone desde 1997 e eles têm um filho. Ele é formado em História e Teologia, pós-graduado em Administração Escolar e mestre em Educação (PUC-SP). Atualmente faz mestrado em Teologia do Novo Testamento no Seminário Bíblico Palavra da Vida- Atibaia, SP.
É pastor interino da Igreja Batista Sião (São José dos Campos-SP) e atua como diretor acadêmico do ministério Pregue a Palavra.
Atua ainda como coordenador do grupo do Pregue a Palavra de Cuba e como professor convidado da Escola de Pastores PIBA.
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