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Série: TEOLOGIA E FAMÍLIA. Parte 3- Maldição hereditária: Não consigo deixar o pecado, sou vítima de uma maldição? por pr. Nelson Galvão

julho 14, 2017 Mulher da Palavra 0 Comments



Espíritos Familiares

Tempos atrás, um jovem me deu o depoimento de como foi sua experiência com a teologia de maldição hereditária. Mesmo sendo convertido a muitos anos, seu pastor lhe disse que ele precisava quebrar as maldições de sua vida, pois lutava contra pecados sem ter sucesso. Seu pai não era crente e tinha tido uma vida de devassidão. Dessa forma, esse jovem só se livraria dessa maldição se, em sessões de orações com um “profeta específico”, regredisse ao ventre materno, fazendo orações para quebrar as maldições que foram transmitidas pelos seus pais.
Já vimos que o conceito de maldição hereditária , conforme ensinado por muita gente, não está de acordo com o Antigo Testamento (Cuidado com a "maldição"!. O conceito vetero-testamentário de maldição tem mais a ver com um estado de separação de Deus, resultante da quebra da aliança.
Vimos também que a maldição hereditária tem mais a ver com o paganismo do que com o cristianismo (Maldição hereditária: cristianismo ou paganismo?).
Agora, vamos ver um outro conceito da doutrina de maldição hereditária, amplamente divulgado: “Espíritos Familiares”. Espíritos Familiares seriam demônios que, devido ao pecado de algum antepassado, acompanham geração a geração, impondo-lhes aquele mesmo pecado. Assim, à semelhança daquele jovem, se uma determinada pessoa comete o pecado de corrupção, por exemplo, ela deu oportunidade a demônios de transmitirem os mesmos pecados à sua descendência.

Ricardo Mariano define esta ideia da seguinte forma:

“Os que pregam acerca de tais espíritos crêem que um indivíduo, crente ou não, tendo ancestral que pecara ou mantivera ligações com espiritismo, idolatria ou quaisquer práticas religiosas antibíblicas, carrega consigo a maldição provocada pelo demônio herdado. Para libertar-se, precisa renunciar ao pecado e às ligações demoníacas de seus ancestrais e ‘quebrar’, por meio do poder de Deus posto em ação pelo culto de intercessão, as maldições hereditárias.”[1]

O texto mais usado para defender esta ideia é Lv 19:31, na versão “King James”: “Não vos voltarei para os que tem espíritos familiares, para serdes contaminados por eles. Eu sou o Senhor.”
Robson Rodovalho, em seu livro “Quebrando as maldições”, explica este pensamento da maneira como se segue:

“Deus tão somente entrega aquela família ou indivíduo, a sofrer as ações dos espíritos familiares que induziam seus antepassados àquelas práticas pecaminosas. Desta forma, as heranças espirituais são transmitidas de geração a geração e é por isso que se cumpre o provérbio popular: Tal pai... Tal filho.” Há um acompanhamento, por parte destes demônios, sobre as famílias. E eles transmitem os mesmos vícios, comportamentos e atitudes de que temos falado.” [2]

Segundo Robson Rodovalho, estes espíritos familiares são encarregados de transmitir maldições para as gerações posteriores. Seus campos de atuação são: casamento, violência, enfermidade, vícios, loucura e destruição das finanças.
A Missão Evangélica Shekinah ainda fala sobre isso da seguinte forma:

“O problema teológico é facilmente explicado. O pecado dá direito legal à satanás de gerar consequências nas gerações futuras. Ele se utiliza de espíritos malígnos familiares, demônios específicos que controlam cada família. Veja porque no espiritismo realiza-se uma sessão chamada de consulta ao morto (falecido). Muitos, por ignorância, crêem que o espírito que incorporou no médium é verdadeiramente do falecido, pois ele fala como se fosse o falecido, diz as coisas que ele gostava, etc. Mas na verdade, é o espírito familiar maligno que acompanha aquela família, por alguma legalidade. Estes espíritos familiares cumprem a função descrita em I Pedro 5: 8 “...o diabo, vosso adversário, anda em derredor...”, pois ele não é onipresente. Eles acompanham aquela família, geração após geração, esperando uma brecha para penetrar (assim como no caso de Judá até Davi). Também se utilizam da ignorância do homem.”[3]

A Missão Shekinah ainda falando sobre isso, oferece uma lista de áreas onde estes espíritos familiares atuam. Entre estas está:

“Espíritos familiares na área de temperamentos e caráter: 01. Injustiça 02. Dolo 03. Detratação (depreciar, reputação) 04. Assaltos 05. Assassinatos 06. Furtos 07. Fraudes 08. Falta de misericórdia 09. Difamação 10. Maldade 11. Calúnia 12. Injúria 13. Crueldade 14. Malignidade 15. Orgulho 16. Vaidade 17. Presunção 18. Cobiça 19. Covardia 20. Mentira 21. Rebeldia 22. Maledicência 23. Malícia 24. Ganância”.[4]


Espíritos familiares à luz das Escrituras

A base bíblica que os mestres da doutrina de quebra de maldições apresentam para apoiar o pensamento de “espíritos familiares”, é o texto já citado acima de Lv 19:31, na versão King James
Sobre este texto, Robson Rodovalho escreve que “é esta a base bíblica que temos para demonstrar que estes espíritos de adivinhação, necromancia e feitiçaria, passam de geração a geração.” [5]
Se este é o único texto (e é o único!) para apoiar a doutrina de espíritos familiares não é difícil chegarmos à conclusão de que não tem base bíblica.
O Velho Testamento foi escrito em hebraico e não em inglês. Por isso, faz-se necessário consultarmos o hebraico.
A palavra em questão é אֹבֹת֙ (ob). Esta palavra indica aqueles que consultam espíritos. Literalmente é “o vaso”, ou “instrumento dos espíritos”. Portanto, a feiticeira de Endor é uma ‘ob (1Sm 28); em Lv 19:31, o povo de Israel é instruído a ficar longe destes ‘ob.
Uma série de outras passagens envolvendo a palavra ‘ob, são encontradas nas Escrituras (Lv 20:27; Dt 18:10,11; Is 8:19), sempre denotando pessoas que se envolvem na consulta de mortos.
Outra coisa que precisamos considerar é que àquilo que os mestres da quebra de maldição chamam de espírito de prostituição, de inveja, de lascívia, etc., a Bíblia chama de obra da carne (Gl 5), e só se pode vencer, arrependendo-se do pecado, através da submissão ao Espírito Santo (Gl 5:16; 1 Co 6:9-11). Vamos nos deter mais nesse assunto logo abaixo.

O que Paulo em Gálatas fala sobre a maldição?

Assim como vimos a partir do Antigo Testamento, “maldição” tem a ver com estado de separação em relação a Deus por conta da quebra da lei. Isso é muito claro especialmente no livro de Deuteronomio. Em Dt 21.23, está escrito:

23 o seu cadáver não permanecerá no madeiro durante a noite, mas, certamente, o enterrarás no mesmo dia; porquanto o que for pendurado no madeiro é maldito de Deus; assim, não contaminarás a terra que o SENHOR, teu Deus, te dá em herança.

A LXX ao traduzir esse Texto Massorético de Deuteronômio, traduz a palavra  אָר֤וּ (ara) por ἐπικατάρατος (epikatáratos). Essa é a palavra usada por Paulo em Gálatas 3. 10-13.

10 Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no Livro da lei, para praticá-las.
11 E é evidente que, pela lei, ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé.
12 Ora, a lei não procede de fé, mas: Aquele que observar os seus preceitos por eles viverá.
13 Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro)

A carta de Gálatas foi escrita por Paulo, no ano 49 d.C, na ocasião em que estava em Antioquia[6]. O teor da carta pode ser percebido através das expressões: “Estou admirado”(Gl 1.6); “Ó Gálatas insensatos” (Gl 3.1); “Temo que eu talvez tenha trabalhado inutilmente para convosco” (Gl 4.11); “Pois estou perplexo a vosso respeito” (Gl 4.20); “Corríeis bem. Quem vos impediu de obedecer à verdade? (Gl 5.7); “Quem dera se castrassem aqueles que vos estão perturbando” (Gl 5.12).
Sim, Paulo estava profundamente indignado com os Gálatas! Por que? Haviam falsos mestres na igreja que ensinavam um “outro evangelho” (Gl 1.6-9), à semelhança dos mestres da maldição hereditária!
A indignação de Paulo se dava pelo fato dos Gálatas estarem absorvendo as doutrinas desses falsos mestres.
Esse “outro evangelho” ensinado pelos falsos mestres de Gálatas tinha como características:

1-    Se colocar contra o apostolado de Paulo.
·         “Isso é o que Paulo pensa! É o pensamento dele, não quer dizer que seja de Deus”. (Gl 1.10-12)
·         “A mensagem de Paulo é boa, mas incompleta. Ele aprendeu em Jerusalém e nós também. Sabemos toda a verdade”. (Gl 1.13-17)
·         “A mensagem de Paulo não está de acordo com os demais apóstolos!” (Gl 1.18-24)
2-    O ensino deles era escravizante (Gl 2.4)
3-    Eram judaizantes. Ensinavam elementos do judaísmo como necessários para a salvação (Gl 2.14; 3.2; 4.9,10; 5.2)

Diante disso, Paulo escreve uma das cartas mais veementes do Novo Testamento, apresentando uma defesa firme e inconteste do verdadeiro Evangelho.
No cap. 1 Paulo afirma que O Evangelho se opõe ao pretencioso mérito humano e transforma gratuitamente os homens, por meio de Cristo, para a Sua glória. No cap. 2, mediante aqueles que não creêm na suficiência do Evangelho, Paulo afirma cateoricamente que o Evangelho da Graça é a verdade e os falsos mestres precisam ser resistidos para que a verdade do Evangelho permaneça na igreja.
Chegamos, portanto, ao cap. 3 (onde está o texto mencionado acima que refere-se a maldição. Gl 3.10-13). Neste capítulo Paulo afirma que o cristianismo judaizado é um falso evangelho. Os argumentos para essa afirmação são apresentados da seguinte forma:

1-    Gl 3.1-5 – O cristianismo judaizado deve ser negado por conta da própria experiência de salvação dos Gálatas mediante a fé em Cristo nega.
2-    Gl 3.6-14 – O cristianismo judaizado deve ser negado por conta do testemunho do Antigo Testamento que atesta que a salvação é exclusivamente mediante a fé.
3-    Gl 3.15-29 – O cristianismo judaizado deve ser negado porque não faz quando considerado por meio da lógica humana.

Consideremos então o ítem “2” em que Paulo afirma que o cristianismo judaizado deve ser negado por conta do testemunho do Antigo Testamento que atesta que a salvação é exclusivamente mediante a fé.
No cap. 3.6-14, ao olhar para o Antigo Testamento, Paulo compara aqueles que confiam nas obras da lei e aqueles que creêm.
Abraão foi justificado pela fé. Logo, os filhos de Abraão são aqueles que crêem em Cristo, não os que confiam nas obras da lei. (Gl 3.6-9).
Agora, os que confiam nas obras da lei estão debaixo de maldição (Gl 3.10-13), porque a maldição é um estado de separação proveniente da quebra da lei. E aqueles que se confiam na lei acarretam inevitavelmente em quebra desta.
Daí então que se faz necessária a fé em Cristo. Isso porque Cristo assumiu a maldição em nosso lugar. Perceba que essa maldição não se trata de agoro, espíritos familiares em objetos e outras crendices dos mestres de maldição hereditária, mas o estado de separação em relação a Deus proveniente da quebra da aliança.
Na crucificação, Cristo experimentou por nós o estado de separação. De acordo com Beale e Carson:

“A crucificação romana, embora muito diferente dos métodos de execução do AT, continha o mesmo elemento da vergonhosa exposição pública sobe algum tipo de armação de madeira, e essa exposição, de acordo com Deuteronômio, é que reflete a maldição divina.”[7]

Cristo se fez maldito em nosso lugar para que tivéssemos a bênção prometida a Abraão.
É por isso que a doutrina de maldição hereditária é tão danosa à igreja. Ela macula a doutrina da expiação e substituição, efetuados por Cristo. Todas as vezes que “quebramos” supostas maldições por meio de orações, jejuns, identificação de demônios e decretos para que eles saiam, perdemos de vista que Cristo já fez tudo por nós. Ele já carregou nossa maldição e já expos os espíritos malignos à vergonha.
                                                                                                            
Um outro problema da falácia da maldição hereditária é que se torna mais uma fuga quanto à responsabilidade ao pecado.
Em seu livro Sociedade Sem Pecado, John MacArthur afirma que na sociedade atual a responsabilidade moral foi substituída pelo vitimismo. Dessa forma, não se concebe mais culpa, consciência e arrependimento, mas indivíduos cujas ações são o resultado de experiências de sua infância ou juventude. No caso da teologia de maldição hereditária, o resultado de experiências de antepassados. “Nossa cultura declarou guerra contra a culpa. Seu conceito literal é considerado medieval, obsoleto e improdutivo[8]”.
Escrevendo ao Gálatas, Paulo não menciona “espíritos familiares”, mas “obras da carne”:

Ora, as obras da carne são manifestas: imoralidade sexual, impureza e libertinagem; idolatria e feitiçaria; ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja; embriaguez, orgias e coisas semelhantes. Eu os advirto, como antes já os adverti, que os que praticam essas coisas não herdarão o Reino de Deus. (Gl 5.19-21).

Diante dessas obras da carne, Paulo não diz para os crentes identificarem o espírito familiar e o amarrarem. Ele diz: “Andai pelo Espírito e nunca satisfareis os desejos da carne”. (Gl 5.16).
O que significa “andar no Espírito”? Não é ter visões, revelações, profecias ou ouvir vozes e atribuí-las ao Espírito Santo. Mas confiar inteiramente na eficácia do sacrifício de Cristo para a santificação.
Paulo afirma no cap. 5.25: “Se vivemos pelo Espírito, andemos também sob a direção do Espírito”. Paulo já havia mencionado que os crentes da Galácia haviam começa pelo Espírito (Gl 3.3). Disse também que os gálatas são filhos da promessa, à semelhança de Isaque, e que estes nasceram segundo o Espírito (Gl 4.28,29). Ou seja, por meio da fé no sacrifício de Cristo, os crentes têm uma nova vida e, quem opera esta nova vida no crente é o Espírito Santo. Assim, uma vez que o Espírito Santo nos deu vida mediante a fé em Cristo, permaneçamos nesta mesma fé, no combate às obras da carne.
Assim, meu caro leitor, talvez você esteja lutando contra um pecado específico, à semelhança do jovem que relatei no início do texto. Quem sabe seja lascívia, pornografia, inveja, ou mesmo explosões de ciúmes. Saiba que a eficácia contra o pecado não está em considerar estas coisas espíritos demoníacos, não está em se considerar vítima de demônios, mas em reconhecer sua fragilidade enquanto pecador e lançar-se em confiança no sacrifício de Cristo.


Pr. Nelson Galvão
Sola Scriptura




[1] Ricardo Mariano – Neo-Pentecostais – p. 139
[2] Robson Rodovalho- Quebrando As Maldições Hereditárias- p. 10
[3] Missão Evangélica Shekinah- Preparação de ministradores na área de libertação e cura interior. p.56 – Obra não publicada
[4] Ibid. p. 62
[5] Robson Rodovalho- Quebrando as maldições hereditárias. p. 12
[6] Carlos Oswaldo Pinto. Foco no Novo Testamento. p. 313.
[7] BEALE, G. K & CARSON, D.A. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. p. 990.
[8] MACARTHUR, John Jr. Sociedade sem pecado.  São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p.15.


Nelson é casado com Simone desde 1997 e eles têm um filho. Ele é formado em História e Teologia, pós-graduado em Administração Escolar e mestre em Educação (PUC-SP). Atualmente faz mestrado em Teologia do Novo Testamento no Seminário Bíblico Palavra da Vida- Atibaia, SP. 
É pastor interino da Igreja Batista Sião (São José dos Campos-SP) e atua como diretor acadêmico do ministério Pregue a Palavra. 
Atua ainda como coordenador do grupo do Pregue a Palavra de Cuba e como professor convidado da Escola de Pastores PIBA.

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