NelsonGalvao,
Um homem cristão (que venceu a tentação) em uma ocasião sentiu um tremendo desejo lascivo para com uma criancinha, sem razão aparente. Ele depois descobriu que seu bisavô era um voraz molestador de crianças, que abusou de suas próprias netas[1].
Nas culturas antigas era ordinária a busca pelo sobrenatural quando os métodos naturais não tinham eficácia diante de suas necessidades. Essa busca pelo sobrenatural era conhecida como “magia”. A magia era “a exploração de poderes miraculosos ou ocultos, por métodos cuidadosamente especificados para atingir finalidades que doutro modo não podiam ser alcançadas.”[2] Para as culturas antigas, “o favor das divindades era obtido por meio de encantamentos e fetiches”.[3]. Sobre isso comenta Antônio Neves:
Lothar Coenen também fala da seguinte forma:
Pr. Nelson Galvão
Série: TEOLOGIA E FAMÍLIA. Parte 2- Maldição hereditária: cristianismo ou paganismo?, por pr. Nelson Galvão
Balança da Maldição, do Livro dos Mortos do Antigo Egito. |
Um homem cristão (que venceu a tentação) em uma ocasião sentiu um tremendo desejo lascivo para com uma criancinha, sem razão aparente. Ele depois descobriu que seu bisavô era um voraz molestador de crianças, que abusou de suas próprias netas[1].
De onde veio o desejo
lascivo desse homem? Para os mestres da teologia de maldição hereditária, esse
desejo veio da maldição herdada do seu bisavô. Entretanto, para as Escrituras
esse desejo é oriundo de um coração pecador, procurando desculpas para
justificar o seu próprio pecado:
E, por haverem
desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição
mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes, cheios de toda
injustiça, malícia, avareza e maldade; possuídos de inveja, homicídio,
contenda, dolo e malignidade; sendo difamadores, caluniadores, aborrecidos de
Deus, insolentes, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos
pais, insensatos, pérfidos, sem afeição natural e sem misericórdia.
Ora, conhecendo eles
a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam,
não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem. (Rm 1.28-32).
No primeiro post da
série Teologia e Família, sobre Maldição hereditária (Veja aqui: Cuidado com a Maldição), vimos que
o conceito de maldição conforme ensinado pelos mestres dessa teologia não é
bíblico. No Antigo Testamento, a maldição tem mais a ver com um estado de
quebra da comunhão com Javé, por conta do rompimento com a aliança mosaica.
Diante disso,
perguntamos: Se o conceito de maldição hereditária não é oriundo das
Escrituras, de onde vem? De onde veio essa crença? Acredito que essa crença é
oriunda do paganismo antigo. Para entendermos, precisamos voltar às
civilizações antigas.
A Maldição nas culturas
antigas
Nas culturas antigas era ordinária a busca pelo sobrenatural quando os métodos naturais não tinham eficácia diante de suas necessidades. Essa busca pelo sobrenatural era conhecida como “magia”. A magia era “a exploração de poderes miraculosos ou ocultos, por métodos cuidadosamente especificados para atingir finalidades que doutro modo não podiam ser alcançadas.”[2] Para as culturas antigas, “o favor das divindades era obtido por meio de encantamentos e fetiches”.[3]. Sobre isso comenta Antônio Neves:
Desde tempos imemoriais se cultivava a magia. A
ideia fetichista de que o mundo está povoado de maus e bons espíritos e que os
maus podem ser propiciados por meio de oferendas, rezas e tantos outras
invenções pagãs, oferecia vasto campo a explorações nas crendices populares.
Todos os povos palestinos eram dados a essas práticas, mesmo que não sejam
considerados propriamente povo fetichista, mas apenas idólatras.[4]
Lothar Coenen também fala da seguinte forma:
No pensamento da antigüidade, a palavra tem
poder intrínseco que é liberado pelo ato de pronunciá-la, e independente deste
ato. A pessoa amaldiçoada é assim exposta a uma esfera de poder destrutivo. A
maldição opera de modo eficaz contra a pessoa execrada, até que se esgote o poder
inerente na maldição.[5]
Egito
No Egito, a magia era efetivada através de
rituais que representavam o resultado desejado; i, é, se o mágico quisesse
destruir o inimigo, ele faria uma imagem de cera de seu inimigo e, em ritual,
destruiria o boneco. A magia também era efetivada através de pronunciamentos de
palavras que eram tidas como eficazes para a efetivação do encantamento. Em
geral, a magia era utilizada para beneficiar os vivos e os mortos.
Na pirâmide de Sakkarah temos um exemplo da
crença dos antigos egípcios em maldições. Esta pirâmide era do faraó Unis
(século 25 a.C). O deus da terra Geb é citado como a autoridade para impedir
que os mortais abusem do nome do rei falecido. O túmulo era a "casa da
eternidade" de um homem, e os infratores de um túmulo eram ameaçados com
um julgamento após a morte. A seguinte advertência aparece no túmulo de Sakkarah:
Quanto a qualquer nobre, qualquer oficial ou
qualquer homem que rasgue qualquer pedra ou qualquer tijolo deste túmulo, serei
julgado com ele pelo grande deus, eu tomarei seu pescoço como um pássaro, e
farei com que todos os vivos que estão na Terra tenham medo dos espíritos que
estão no Ocidente, os que ainda estão longe deles[6].
Um
outro escrito do Egito Antigo mostra a crença desse povo em maldição. O reinado
de Ramsés II vivia em hostilidade contra o povo Hitita. No entanto, pelo
vigésimo primeiro ano deste faraó (cerca de 1280 aC), ambos os poderes estavam
prontos para concluir um tratado, para que eles voltassem a atenção para outros
problemas, como as invasões dos "Povos do Mar". Os termos finais
desse tratado são curiosos. Ele lança uma maldição sobre quem quebrar os termos:
Quanto a estas palavras que estão nesta mesa de
prata da terra de Hatti e da terra do Egito, como para aquele que não os
guardar, mil deuses da terra de Hatti, juntamente com mil deuses da terra do
Egito destruirão sua casa, sua terra e seus servos[7].
Medos e Persas
Os povos mesopotâmicos acreditavam em
maldições. O famoso Código de Hamurabi é um
conjunto de leis criadas na Mesopotâmia, por volta do século XVIII a.C, pelo
rei Hamurabi da primeira dinastia babilônica. Nesse código encontra-se a
advertência para aqueles que quebram as leis:
Quanto a esse homem, seja o
rei ou o senhor, ou governador ou pessoa de qualquer categoria,
Poderoso Anum, pai dos deuses,
que proclamou meu reinado,
Priva-o da glória da
soberania,
Que ele quebre seu cetro, que
ele amaldiçoe seu destino!
Mai Enlil, o senhor, o
determinante dos destinos,
Cujas ordens não podem ser
alteradas,
Que fez meu reino ótimo
Incite revoltas contra ele na
sua morada que não pode ser suprimida,
Infortúnio que leve à sua
ruína!
Que ele determine como o
destino dele um reinado de “ai”,
Dias poucos em número, anos de
fome,
Escuridão sem luz, morte
súbita!
Que ele ordene com sua palavra
contundente a destruição de sua cidade,
A dispersão de seu povo, a
transferência de seu reino,
O desaparecimento de seu nome
e memória da terra![8]
Os medos e persas também tinham elementos de
magia em sua cultura e, principalmente, em sua religião oficial. Sua magia
originou-se, principalmente, dos sumérios de 3.000 a.C. O Zoroastrismo é uma
religião de origem persa. Interessante notar (a fim de ressaltar o envolvimento
desta cultura nas artes mágicas) que os sacerdotes do zoroastrismo são chamados
de “magi” e esta é a origem da palavra portuguesa “mágica”. Esta mágica era
praticada com o mesmo sentido que era praticada no Egito. Ela visava os
interesses tanto dos vivos como dos mortos. Como no caso do Egito, a magia era
praticada por sacerdotes eruditos.
Civilização Hindu
A civilização hindu surgiu por volta de 1500 a
800 a.C. Sua religião era marcada pelas práticas mágicas bastante numerosas.
Também era marcada pelo panteísmo, onde a divindade ficava à disposição do
homem que pode manipulá-la através do sacrifício ou devoção. A magia nesta
civilização era comum. Ela envolvia todos os aspectos da vida: saúde, trabalho,
sexo, etc. Suas principais maneiras de se fazer magia são alistadas por André
Aymard e Jean Auboyer:
Fórmula murmurada (mantra), as transferências
dos problemas humanos para objetos ou animais, enfim, encantos e amuletos que
devem assegurar a longa vida, curar ou combater as doenças, afastar as más
influências, banir os aborrecimentos e sofrimentos, conquistar o amor do ser
amado etc.[9]
Os Gregos
e Romanos
A
civilização greco-romana possuía um panteão complexo de deuses. Esses deuses
viviam as venturas e desventuras humanas, tinham virtudes e vicissitudes
compartilhadas com os mortais. O interessante para o nosso estudo é que os
contos greco-romanos míticos estão repletos de relatos de maldições.
Um desses relatos é o famoso mito do Minotauro.
O curioso é que esta criatura metade homem e metade boi é fruto de uma
maldição! De acordo com o mito, Minos pediu a Posseidon o reinado de Creta. A
condição imposta por Poseidon é que este enviaria a Minos um touro que deveria
ser sacrificado. Minos, invés de sacrificar o touro, sacrificou um outro de
menor qualidade e espera que Poseidon não notasse a diferença. Mas Poseidon
percebeu que fora enganado e decidiu castigar Minos. A Maldição seria que a
mulher de Minos, Pasífa, se apaixonaria pelo touro. Dessa união nasceu o Minotauro.
Um outro mito muito interessante é o das Eríneas,
ou Fúrias. Estas eram três: Megera, Tisífone e Alecto. Eram “divindades
infernais do ódio, da vingança e da justiça”[10]. No julgamento de Orestes, Megera grita:
“Malditos todos aqueles que tomarem o partido deste cão odioso”[11]. O curioso ainda é que
essas divindades podiam ser convocadas a partir da maldição lançada por alguém
que clamava por vingança.
Assim,
o conceito de maldição é muito presente na cultura greco-romana que entendia
este conceito de maneira mecânica, onde os deuses poderiam ser manipulados por
precações e fórmulas mágicas.
Para
estes povos, a maldição era um desejo exteriorizado em forma de palavras ou,
até mesmo, de ritos; estas palavras e ritos, segundo se pensava, tinham o poder
intrínseco de realizar o desejo expresso. Sobre isso comenta Mary J. Evans:
Na Mesopotâmia, parece que aquela vida foi
dominada lidando com o terror de maldições e agouros. Estas maldições eram
invocadas por indivíduos e a sensação é que os deuses não podiam escolher não
agir. A pessoa tinha a impressão que a maldição age totalmente
independentemente da relação entre o indivíduo e os deuses dele.[12]
Existe um registro bíblico dessa crença antiga,
que é o relato de Balaão e Balaque (Nm 22,23). Balaque era um rei Moabita que
contratou Balaão para amaldiçoar Israel. As palavras de Balaque expressam sua
crença no poder intrínseco das palavras em trazer benefícios ou malefícios ao
seu objeto:
Vem, pois, agora, rogo-te, amaldiçoa-me este
povo, pois é mais poderoso do que eu; para ver se o poderei ferir e lançar fora
da terra, porque sei que a quem tu abençoares será abençoado, e a quem tu
amaldiçoares será amaldiçoado. (Nm 22:6).
Já vimos que a palavra hebraica usada por
Balaque foi “qäbab”, que exprime a ideia de pronunciar uma fórmula com o
propósito de trazer malefícios ao seu alvo. Isto ilustra, como diz Russel
Shedd, “a crença popular que o próprio fato de um profeta prenunciar algo
traria o efeito profetizado.”[13]
Dessa forma, pode-se perceber que a crença em
maldição hereditária não pertence ao ensino das Escrituras, mas aos povos
idólatras do tempo do Antigo Israel.
Brasil
O
Brasil de nossos dias é um amálgama de crenças, um sincretismo de cristianismo
e crenças africanas, resultante dos tempos da colonização. Precisamos lembrar
que mesmo o cristianismo que foi importado, não era inteiramente bíblico, mesmo
na perspectiva católica. “A catequese para o negro foi sumária, distraída,
desinteressada das reais conquistas da alma[14]”. Nas palavras de
Gilberto Freyre, “soubesse rezar o padre nosso e a ave Maria, dizer
creio-em-deus-padre fazer o pelo-sinal-da-santa-cruz – e o estranho era
bem-vindo no Brasil colonial”[15].
Assim,
as primitivas crenças dos povos antigos foram adaptadas às doutrinas cristãs,
impregnando à teologia popular: votos, almas penadas, cumprimento de promessas
e maldições. É fundamentado nisso que o Bispo Macedo afirmou: “O Brasil é um
grande terreiro de macumba. E nós temos trabalhado exatamente em cima da
experiência do brasileiro.”[16]
Estudioso
da cultura brasileira, Câmara Cascudo, em seu livro “Superstição no Brasil”,
menciona algumas expressões populares que revelam a crença em maldições: “Que
morras de sede dentro d’água! Que não tenhas a quem abençoar! Urubu há de comer
tua carniça, Excomungado!”[17].
Nesse
conjunto de crenças populares ainda há espaço para a crença de que o “nome” é
uma potência mágica. Sua enunciação, intencional e veemente tem o poder de
fazer valer o rogo. Também deve-se prestar atenção ao jeito e a hora para a eficiência
das pragas.
É
nesse contexto cultural que a teologia da maldição hereditária, importada dos
EUA, tem tanto apreço em terras tupiniquins.
Todavia, não encontra respaldo Bíblico. A
crença no poder autônomo das imprecações respaldadas por espíritos tem mais a
ver com as nações vizinhas de Israel e não era compartilhada pelos homens de
Deus. Não se encontra um texto sequer nas Escrituras onde descreva que mantras,
o recitar de nomes, objetos mágicos, podem lograr êxito na efetivação de
maldições.
Sobre isso, o dicionário Internacional de
Teologia do Antigo testamento é feliz em comentar:
Que tais fórmulas
existiram por todo o mundo antigo ninguém nega. Mas a diferença entre elas e as
do AT são adequadamente ilustradas nesta citação de Fensham: ‘A execução mágica
e mecânica da maldição [...] aparece em tremendo contraste com a abordagem
egoteológica dos escritos proféticos [...] o ego do Senhor é o elemento central
da ameaça, e execução e a punição de uma maldição. [...] As maldições do antigo
Oriente Próximo, que aparecem fora do AT, são dirigidas contra a transgressão
da propriedade privada [...] mas a obrigação ético-moral relacionada com o
dever que se tem perante Deus de amar ao próximo não é sequer mencionada[18].
Sendo assim, talvez sua vida seja marcada pelo medo
oriundo de uma suposta maldição que alguém lançou sobre você. Talvez exista um
pecado que seu filho esteja lutando e não consegue abandonar e alguém lhe disse
que você tem que quebrar a maldição que veio dos antepassados. Pode ser que
você lute com um vício do seu marido e o que lhe vem na cabeça é que existe uma
maldição que foi jogada sobre ele. Meu caro leitor, essa crença não tem
respaldo bíblico. Pertence ao folclore evangélico brasileiro, ao paganismo!
No próximo post vamos tratar do conceito de
“Espíritos familiares”, dentro dessa temática de maldição hereditária, e de
como a carta de Paulo aos Gálatas nos fala sobre o verdadeiro conceito bíblico
de maldição e a forma correta de lidar com ela.
Pr. Nelson Galvão
Sola Scriptura
[1]
História extraída de Ricardo Mariano. Neopentecostais. p. 140
[2]
J.
D. Douglas – O Novo dicionário da Bíblia – p. 978
[3]
Carlos Oswaldo Pinto. História do Oriente Médio Antigo. Obra não publicada. p.
25
[4]
Antônio
Neves de Mesquita. Estudo nos livros de Números e Deuteronômio – p. 66
[5]
Lothar
Coenen. Dicionário de Teologia do Novo Testamento. p. 184
[6] PRITCHARD, James B. (Ed.). Ancient
Near Eastern Texts. Princeton:
Princeton University. p. 614.
[7] Ibid, p. 397
[8] Ibid, p. 381
[9] AYMARD et
al. O oriente e a Grécia Antiga. p. 241
[10]
Franchini, A. S & Carmen Seganfredo. As 100 melhores histórias da
mitologia. p. 250.
[11] Ibid.
[12] Mary J.
Evans. “A plague on both your houses” cursing and blessing reviewed. p. 4
[13] Russel
Shedd – Bíblia Shedd – p. 224
[14]
Câmara Cascudo. Superstições no Brasil. p. 345.
[15]
Gilberto Freire. Casa Grande e Senzala. p. 66.
[16]
Ricardo Mariano. Neopentecostais. p. 136.
[17] Câmara
Cascudo. Superstições no Brasil. p. 477.
[18] HARRIS et
al. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. p. 127
Nelson é casado com Simone desde 1997 e eles têm um filho. Ele é formado em História e Teologia, pós-graduado em Administração Escolar e mestre em Educação (PUC-SP). Atualmente faz mestrado em Teologia do Novo Testamento no Seminário Bíblico Palavra da Vida- Atibaia, SP.
É pastor interino da Igreja Batista Sião (São José dos Campos-SP) e atua como diretor acadêmico do ministério Pregue a Palavra.
Atua ainda como coordenador do grupo do Pregue a Palavra de Cuba e como professor convidado da Escola de Pastores PIBA.
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